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ARQUITETURA E CIDADE

Acredito que vale a pena começar a refletir sobre arquitetura e cidade partindo sempre de um ponto-de-vista generalizado e que não seja nem do técnico nem do teórico que pensam e projetam a cidade e alguns dos seus elementos.

 

Em pesquisa recente com alunos de 300 escolas primárias de toda Catalunha – Espanha, a descrição do que era a cidade foi a seguinte: ‘ruas – carros – prédios – casas – lojas – escola’. Ou seja, uma estrutura física, com espaços de deslocamento que conectam algumas construções isoladas. Para os realizadores de tal estudo, essa resposta foi desoladora. A cidade era, portanto, um espaço urbanizado e nada mais.

 

Mesmo tendo a oportunidade de construírem as suas cidades com outras peças (foi oferecido aos alunos uma série de módulos de madeira, figuras, etc), a maioria das construções resultaram em peças empilhadas, desconectadas entre si e com carros ocupando / passando entre estes vazios.

Algumas variações a este modelo apareceram obviamente, mas quase sempre entre os alunos das zonas rurais onde o modelo de cidade era mais rico, com maior variedade de símbolos, figuras, relações, percursos...

 

Como então, nós, os técnicos e teóricos que pensamos e projetamos arquitetura e cidade devemos nos posicionar?

 

Obviamente nosso modelo, nosso imaginário é mais rico, mais variado, mais complexo, mas não somos os únicos que HABITAMOS  na cidade, que construímos e usamos os seus espaços. Portanto, nossa experiência de cidade e nossa idéia de arquitetura é pontual e pouco compartilhada.

 

Será um paradoxo querer unir urbanização e urbanidade numa mesma estrutura física? Com certeza, não. Algumas cidades, felizmente, possuem esta dupla orientação, apesar de que sejam uma minoria, já que a maioria de cidades que congregam grande parte da população mundial não desfruta deste direito à cidade no seu sentido pleno.

 

Qual seria então esta cidade democrática, onde todos e cada um pudesse experimentar e construir sua própria cidade interiorizada, experiência que vai mais além da percepção visual de sua estrutura física?

 

Segundo Ruben Ventós, uma cidade carregada de urbanidade deve proporcionar concentração e anonimato, espacialidade e identidade, espaço e tempo, forma e memória, reconhecimento e distância. Essa dupla orientação que nos aponta Ventós deve, além disso, a simultaneidade das ações e em diferentes níveis.

 

Hoje em dia, a cidade exclui mais que inclui. Não é de se estranhar que as crianças da pesquisa já tenham uma pobre experiência de urbanidade. A cidade não é acessível a elas.

 

Mayumi Lima já nos colocou nos anos 80 essa questão sobre a mesa. Inclusive, apontou que as experiências de urbanidade eram mais ricas para as crianças na informalidade urbana das favelas que na estrutura da cidade formal.

 

Observou, que lá as crianças construíam ambientes, brincavam com carros e bichos, pedaços de madeira, tampinhas de garrafa, que construíam objetos. Vivenciavam simultaneamente o espaço de jogos e brincadeiras e observavam o mundo dos adultos. Tinham acesso a uma ‘gradação de lugares que uniam o indivíduo, a sociedade, a família e o urbano’.

 

Aldo van Eyck, através dos seus projetos e principalmente através dos playgrounds que projetou e construiu ao longo de 30 anos, pensou a relação entre arquitetura e cidade e a necessidade de que esta seja um espaço inclusivo, agregador de toda a sociedade, incluindo as crianças. Para ele, a simultaneidade e o fenômeno gêmeo eram fundamentais de se considerar quando projetamos objetos arquitetônicos e cidade. Entendia que, numa cidade humanizada, a casa é uma cidade diminuta e a cidade, uma grande casa. Relata, então,  uma estória que lhe contou um antropólogo francês de sua visita a um povoado Dogon, em Mali. O garoto dogon perguntou ao antropólogo se gostaria de conhecer a sua casa. Obviamente, o antropólogo disse que sim. Assim, o garoto foi lhe conduzindo e apresentando-o  a todas as pessoas que encontrou pelo caminho, foi explicando cada detalhe que viu, cada construção, cada espaço. O antropólogo, impaciente, perguntou: ‘Quando chegaremos a tua casa?’. O garoto respondeu: ‘Já estamos nela a tempos, mas também te levarei ao lugar onde durmo’.

Deste modo, a cidade e a sua arquitetura são tempo e espaço interiorizados, experiência que vai além da percepção visual. É uma rede de associações emocionais e intelectuais, de memória, que implica reconhecimento e identidade. Experiências que, através da arquitetura e do desenho da cidade, podem ser potencialmente repetidas, ordenadas e situadas e que permitem aos indivíduos referenciar diferentes pontos no tempo.

 

Assim, o tempo e o espaço não podem ser considerados pelos arquitetos como estáticos. O projeto se faz no presente, porém permite que o passado e o futuro, convergir e recriar-se.

 

As cidades e os objetos arquitetônicos, portanto, devem ser dinâmicos, porque se experimentam e se participa deles. Estimulam a consciência associativa, da duração, da experiência e constroem a consciência de ser, através do estar – consciência do lugar.

 

Nos ressalta van Eyck, ‘a arquitetura deve chegar além da visibilidade, os lugares devem ser concebidos em relação um ao outro já que a memória, a antecipação, a associação emotiva e intelectual transcendem as limitações de distâncias temporal e espacial. Os lugares desconexos e desassociados não podem emergir na mente. Se uma cidade é cidade, transfere humanidade.’

 

Portanto, a cidade deve oferecer espaços de identidade, ser compreensível, espaços que permitam e  estimulem a que cada habitante / usuário construa a sua própria cidade interiorizada, capaz de coincidir, de uma maneira pessoal, com a configuração real da cidade. Deve dispor de uma rede de lugares capazes de estimular, adaptar e sustentar o passado e o futuro, aberta ao câmbio, indicar potencialidades para que ela não se cristalize no tempo. Deve ser um espaço de narração polifônico, propiciar encontros. A arquitetura dever ser o instrumento desse processo sem fim. Quando for assim, já não nos fará falta falar de arquitetura social.

LEPORI, Ana Paula de Oliveira. ‘Arquitetura e Cidade’: Prova escrita para o concurso público para provimento do cargo de professor doutor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, Curso de Arquitetura e Urbanismo. Área de conhecimento: Projeto de Arquitetura e Urbanismo (2010). 

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