O PAPEL DO CRONOTOPO NA CONSTRUÇÃO DE CIDADES DIALÓGICAS
Nas cidades contemporâneas e, particularmente, nos processos de requalificação urbana, os elementos imateriais, provenientes dos códigos de comunicação que estabelecemos com relação ao lugar e com os grupos sociais que ali habitam, são cada vez mais difusos, variados e responsáveis diretos do grau de apropriação que os habitantes fazem da cidade, de seus equipamentos coletivos e das intervenções urbanas propostas, assim como a capacidade destas de adaptação ao território onde estão inseridas. Uma cidade dialógica entende que a decodificação destes elementos imateriais são motores para aperfeiçoar suas políticas públicas e fomentar novas estratégias para a melhoria da cidade.
O processo de transformação urbana é extremamente complexo e portanto, muitas são as condicionantes que considerar na elaboração das suas diretrizes até desembocar na intervenção urbana propriamente dita. Os resultados obtidos pela intervenção urbana, na maioria das vezes tem mais a ver com a qualidade da leitura que se faz do território onde estará inserida e da compreensão dos grupos sociais que ali habitam que com o recurso empregado, a escala ou as qualidades estéticas e / ou construtivas das intervenções propostas.
Uma intervenção urbana ancorada no conhecimento dialógico do universo que a rodeia prioriza a criação consciente de laços de interação, capazes de transmitir a mensagem justa para aquele contexto histórico específico. O conhecimento específico, pormenorizado, determinará a que a intervenção seja de identidade ou de questionamento, de tradição ou de inovação com relação à realidade que a rodeia.
Quando nos referimos a realidade circundante não nos referimos somente a relação estabelecida com território (geográfico, histórico e imaginário), mas também com relação a temática da intervenção proposta, ao programa, ao uso, aos grupos sociais usuários e aos seus universos sobreentendidos. Enfim, a uma série de condicionantes com as quais as intervenções urbanas estarão inevitavelmente inter-relacionadas. Dentro deste contexto a leitura dialógica estabelece quais são os elementos socioculturais que considerar na elaboração das intervenções urbanas, no planejamento da cidade, nas diretrizes e enfoque das suas políticas públicas.
Da macro-estrutura às potencialidades: elementos norteadores da leitura dialógica do bairros
A compreensão da necessidade que impulsiona os processos de intervenção urbana deve partir de uma análise profunda da realidade que o demanda. Esta realidade deve ser compreendida e refletida nas mais variadas esferas que englobam a intervenção e não devem limitar-se em priorizar somente o seu aspecto formal. Esta compreensão global da necessidade que gera a intervenção é o primeiro passo na construção da comunicação, a partir do momento que começa a criar uma ponte entre o governo e lugar e entre governo e usuário, e que começa a desenhar a forma de apropriação que existirá pós-construção.
Assim sendo, estabelecemos que para ler dialogicamente cada bairro analisado devemos iniciar pela a macroestrutura do lugar, pois ela revela o contexto geral de cada lugar e apresenta os elementos que constroem as dinâmicas socioculturais com que as intervenções devem interagir para alcançar uma comunicação dialógica.
A leitura dialógica dos bairros reforça a ideia de que não se deve considerar a cidade como um espaço homogêneo e muito menos que sua conformação é genérica. Ao se aproximar de cada bairro é possível identificar muitas particularidades, que singularizam seus espaços, seus habitantes e as relações que estes estabelecem com o lugar. É muito interessante observar, por exemplo, a profusão de ‘vilas’ que existem dentro de cada uma das vilas estudadas. Estas ‘vilas’ internas que muitas vezes não constam nos mapas da cidade e somente os moradores identificam, possuem nomes e quase sempre são pouco conhecidas pelo poder público, invisíveis nos dados oficiais.
Entretanto estas vilas, informais, denotam a territorialidade existente nos bairros, dá indícios da identidade dos grupos que ali habitam e que traduzem ao espaço físico a história social da conformação do lugar. Confirma que olhando ‘de perto’ nada é igual. Ressalta a importância de ler a conformação do território mais além dos dados estadísticos ou da história oficial (essa sim, genérica), mas a partir da cultura, da relação dos grupos sociais entre si e com o território que habitam. Ou seja, a estrutura urbana e a arquitetura ali presentes não são independentes nem da geografia nem da história do lugar.
Assim sendo, vemos observar com especial atenção os espaço público configurados pois são neles que se manifestam de maneira mais visível as relações de identidade entre a cidade e seus habitantes. Deste modo, o espaço público é por excelência, o meio onde se encontram território, intervenção e habitantes.
Da interação tanto com o território como com o usuário podem surgir duas situações diametralmente opostas com uma gama intermediária que delata a variação do grau de comunicabilidade das intervenções urbanas, indo de alta a nula.
No que respeita a coletividade, esta pode compreender, se identificar com a intervenção proposta e finalmente se apropriar dela. Esta relação de apropriação pode ocorrer em diversos graus de alta a baixa, inclusive podendo resultar numa situação de extrema desintegração, aniquilamento ou rejeição da intervenção proposta. Com relação ao território, a situação se repete, a intervenção urbana pode construir uma relação de comunicação ou exatamente o seu oposto.
Entretanto, vale ressaltar que comunicar com o território não significa necessariamente estar em concordância com ele. Estabelecer um diálogo significa buscar uma posição justa entre o existente (tradição) e a inovação. Assim sendo, considerar a medida justa entre tradição e inovação para cada bairro foi um dos elementos mais importantes da análise dialógica dos bairros.
Quando nos referimos ao território nos estamos referindo aos três níveis existentes desde a perspectiva dialógica, ou seja, a existência do território geográfico, do território histórico e do território imaginário. Assim que, é importante aclarar que mesmo quando a intervenção não tenha se ocupado de estabelecer um diálogo nos três níveis que compõem o território, esta relação sempre existirá, uma vez que o território não é somente um conjunto de características físicas, mas inevitavelmente contém história e está carregado de simbolismo.
O elemento que dinamiza, interpreta e consolida as intervenções urbanas são os grupos sociais que habitam, usam e se relacionam com e a partir da cidade. Deste modo, o estudo dos diferentes grupos sociais que habitam os bairros é primordial para uma leitura dialógica do lugar e do impacto das intervenções sobre ele. Mapear os grupos sociais significa entender que em um mesmo território coabitam usos e interpretações que podem se contrapor, complementar-se ou reafirmar usos já estabelecidos. Significa também entender que os habitantes não são um grupo homogêneo, nem passivo.
Ao aproxima-se dos diferentes universos de valores, crenças, imaginários dos habitantes nos permite antecipar e propor ações que considerem a diversidade existente, que aproveitem as potencialidades latentes e que dialoguem com as expectativas que cada grupo possui sobre os elementos que compõem a sua cidade ideal.
É importante ressaltar que para a construção dos objetos arquitetônicos altamente comunicativos, a dialogia é considerada desde o princípio do processo de planejamento e se converte na base cronotópica da intervenção proposta. O produto urbano resultante da dialogía costuma ter um grande impacto porque inova no seu processo de elaboração, é específico e ‘customizado’ para aquele contexto urbano e social. Assim que, como nos lembra Josep Muntañola, em ‘Las formas del tiempo I’, “Neste tipo de representação ‘híbrida’, a linguagem anterior continua existindo e não é substituído pela nova, mas é ‘iluminada’ pela nova. Cronotópicamente temos polifonía de vozes e polimorfología de pontos-de-vista diversos. E eu acredito que nestes casos o importante é a polifonia de vozes alcançadas com formas e usos novos que nunca copiam ou repetem as formas ou os usos antigos, mas que se contrapõem a eles, porém nunca os eliminam nem os substituem totalmente. Igualmente, toda a inovação deve ter um ponto-de-vista compositivo muito claro, que se sobrepõe as pré-existências sem se igualar a elas, mas que, ao contrário, as incorporam dialogicamente sem modificar a sua autonomia, criando uma arquitetura capaz de cruzar poeticamente o ponto-de-vista do existente com o novo”.[1]
Para possibilitar uma relação positiva dos habitantes com a realidade dos bairros, muitas vezes os habitantes devem passar por uma nova leitura dos lugares onde habitam. Assim sendo, resgatar a memória destes bairros somente terá sentido se é para construir um futuro diferente e co-responsavelmente compartilhado.
Para fazer parte da cidade formal de uma maneira dialógica deve-se respeitar e considerar as especificidades do lugar e consolidar de maneira consciente as identidades que nestes bairros habitam. As características geográficas, históricas e imaginárias dos bairros fornecem uma rica base onde construir estes diálogos.
Recriar penetrações da paisagem original, resgatar reminiscências dos inícios das ocupações, valorizar as identidades culturais transplantadas, estabelecer novas relações de sustentabilidade e cidadania com o território, fomentar as economias criativas latentes, evidenciar as especificidades urbanas existentes – becos, cantos, platôs, mirantes, escadarias...entre outras possibilidades já assinaladas ao longo da pesquisa, permitirão criar diálogos em diferentes níveis, ou seja, entre as ações do governo, os territórios e habitantes, entre os bairros beneficiados pelos projetos, criando uma nova rede de lugares, criando relações extraterritoriais, de diversidade social entre cidade formal e cidade informal. Também entre cidade, educação e novas economias.
Portanto, essa situação impõe de maneira ainda mais incisiva a necessidade que as intervenções sejam dialógicas, pois, “O contraste entre monologias e dialogias na psicogênese da estrutura cronotópica da arquitetura, a história das formas urbanas descreve mudanças físicas correlacionadas com as mudanças sociais, compara formas distintas respondendo a grupos sociais distintos, e o mais interessante, analisa desajustes entre formas e relações sociais, com a existência de cronotopos ineficazes, patológicos, ‘cancerígenos’, ou simplesmente, descobrem a inexistência de valor cronotópico, ou seja, espaços sem cultura.”[2]
Deste modo, a intervenção, desde uma perspectiva dialógica, só gera uma transformação participativa e consciente quando é identificada como potencialidade latente, fruto das relações socioculturais dinâmicas que existem entre o território e os seus habitantes, considerando as três esferas que compõem o território e a diversidade inerente dos grupos sociais que coabitam um mesmo lugar.
Entretanto, o que comumente observados é que as nossas cidades estão carregadas de exemplos de espaços com pouca ou nula apropriação, vazios de significado e que finalmente em pouco tempo se convertem em espaços degradados e abandonados.
Portanto, a falta da dialogía na base cronotópica das intervenções propostas deixa jogados ao azar o poder altamente comunicativo que os objetos arquitetônicos podem alcançar. Assim que, tanto as similaridades como as particularidades identificadas em cada bairro estudado permitem que os novos equipamentos possam estabelecer outro tipo de diálogo, com um nível profundo de comunicação onde a valorização das identidades locais e das potencialidades latentes existentes saiam à tona para construir uma outra realidade urbana, mas sobretudo, social.
Nas áreas metropolitanas, esta condição nos faz indagar qual é o papel a desempenhar pelos espaços coletivos na cidade contemporânea, uma cidade fragmentada, contraditória, heterogênea e desigual tendo em vista a questão da identidade, da resistência ou do aniquilamento dos espaços públicos tradicionais.
Muitos dos espaços públicos das cidades metropolitanas encontram-se deteriorados, inutilizados e sem identidade. Foi um lento e longo processo de abandono, primeiro pela falta de manutenção por parte do poder público e depois por uma parte da população, que migrou para espaços coletivos privados. Deste modo, o espaço público tradicional foi apropriado por uma parte dos excluídos econômicos e sociais que os converteram em seus territórios. Muitos espaços públicos – principalmente as praças – se converteram em pontos de moradia, marginalidade e/ou violência urbana em muitas das nossas cidades.
Esta nova ‘apropriação’ gerou duas reações: por um lado, uma nova tradição de uso, de ocupação do espaço público e por outro lado, uma cristalização no imaginário coletivo da ‘sociedade’ de que as praças, parques e espaços públicos abertos são elementos nao-qualificados para os seus bairros.
Assim sendo, redignificar o espaço público da cidade atualmente é um grande reto que obriga a recriar, fomentar, e muitas vezes introduzir o exercício de vida pública no dia-a-dia da população. O uso da cidade reflete o grau de apropriação e identidade que os indivíduos mantém com a cidade que habitam.
Referências Bibliográficas
[1] MUNTAÑOLA, Josep. ‘Las formas del tiempoI. Arquitectura, educación y sociedad’. Editorial Abecedario. Madrid, abril 2007. Pag.13.
[2] MUNTAÑOLA, Josep. ‘Las formas del tiempoI. Arquitectura, educación y sociedad’. Editorial Abecedario. Madrid, abril 2007. Pag.65.